Este é um projeto de roteiro para teatro adaptado a um conto.
ISABEL
Isabel vacila um instante, morde seu lábio superior e quase o fere, enquanto torna a desligar o telefone-sem-fio. Olha para o mesmo, inerte, mudo em suas mãos fortes e um pouco grandes para uma mulher, e vê escrito “Panasonic”, onde diabos estava com a cabeça quando comprara aquilo, um símbolo consumista para alguém tão idealista quanto ela, argumenta consigo mesma, e, desvia, pelo menos naquele momento, do que esgarça seu peito esquerdo como numa cirurgia cardíaca sem anestesia qualquer. Afasta-se do aparelho e acende um cigarro. Traga fundo, fumaça junto com suspiro de alguém desiludido. Bate a não-cinza no cinzeiro de louça portuguesa, lembrança da última viagem que fizera com Luiz, seu ex-marido. Ah, Luiz, se pelo menos pudesse voltar no tempo... Reflete melancólica. E a porra do telefone que não toca! Volta ao mesmo conflito do botão “on” e “off” de seu Panasonic-sem-fio-com-secretária-eletrônica-de-última-geração. Ligo ou não ligo, pensa ao acender mais um cigarro e pega novamente o telefone, coloca a antena entre os dentes e morde como para se decidir através do flagelo da coisa. Franze a testa, já com vincos de uma mulher de quarenta anos, joga o cigarro ainda inteiro pela janela de seu apartamento, para quê ser educada nesse momento em que Marcela não lhe quer mais? Queria era ligar para falar o que ainda não havia sido dito! Para ouvir a voz de Marcela uma última vez que fosse... Nesse instante, pára seu pensamento, quando o interfone quebra ruidoso o silêncio do apartamento... Coração palpitante, e, a voz de um desconhecido pergunta se quer gás ou água... Não era ela. Pára com o interfone nas mãos e lembra. Como Marcela é linda, atraente, inteligente, agradável, gostosa, apaixonante. Recorda os tempos em que saiam juntas e tudo parecia ir bem, muito bem. Como Isabel adorava Marcela! E esta sempre reticente sugeria para aquela ir com calma, que a vida tinha lhe ensinado que não era assim que se fazia, que ela não estava apaixonada, mas que a achava muito legal e gostava de sair com ela. Isabel editava a parte “boa” da fala de Marcela e a tinha como um amor encontrado através de muito esforço. Muita sorte a gente se encontrar, Isabel lembrava. Afinal, ninguém quer nada sério hoje em dia e eu estou apaixonada, insistia. Não, não quero gás nem água! Quero a Marcela, batendo o interfone com força na parede de sua cozinha. Volta ao telefone. Não liga. Não toca. Isabel dorme então exausta um sono inquieto que só ela pode saber.
DENISE
Denise sempre dominou a arte do convencimento, gostava de se expressar, nas rodas de amigos era ouvida com interesse por todos. Tinha um verdadeiro charme com a sua inteligente oratória-falante-sobre-qualquer-assunto. Apesar de ter vinte e oito anos, se relacionava com pessoas na faixa dos quarenta. Ouvia deles que ela era muito madura para a idade que tinha, e, nunca tiveram qualquer diferença com ela devido a esta discrepância etária. Já havia algum tempo saía com Henriqueta que a amava intensa e cegamente. As duas tinham uns quinze anos de diferença de idade e isto não importava a nenhuma das duas. Denise reluzia ao falar perante Henriqueta que sorvia cada palavra como um bálsamo dos deuses. Mesmo com as muitas noites saindo em turma, devido à insistência de Denise, Henriqueta se sentia orgulhosa por aquela mulher lhe ser tão lindamente linda. Mesmo cansada seguia Denise. Afinal, era apaixonada por ela e declarava isto em público toda vez que lhe aprazia, a despeito da outra se sentir desconfortável e, em casa, lhe explicar que não gostava de manifestações exacerbadas de carinho em público. Denise convidava Henriqueta mais por costume, inconscientemente. Não entendia por que fazia isso, mas quando se tocava, já estavam as duas com a turma na noite. Bebia. Fumava. Falava. Desencantava com a primeira manifestação apaixonada da outra. Com o tempo, Denise diminuiu a fala. Saía. Balbuciava pouco. Bebia. Fumava. Decepcionava-se com as mesmas palavras de paixão declamadas por Henriqueta. Começou a sair menos e ficou triste sem conhecer o motivo. Ela, que sempre era a alegria de todos, passou a ser alguém introvertida e até um pouco tímida. Henriqueta não. Acompanhava a sua musa em qualquer situação até ficar em casa sem fazer nada, só com a companhia da TV. Denise acabou seu namoro e retornou a ser como era antes, com o passar do tempo, e não entendeu muito bem os porquês de tudo aquilo ter acontecido.
ISABEL E DENISE
Você só gosta de quem não lhe dá valor, Isabel ouve isto pela enésima vez de mais um amigo. Pro caralho todos vocês, ninguém sabe o que se passa em minha cabeça, nem mesmo eu, esbraveja. E, após ter amargado meses no apartamento sem sair para se divertir, naquela noite resolve aceitar o convite para ir a uma festa de aniversário de um amigo-de-uma-amiga-de-seu-primo. Veste-se, despretensiosa, com o primeiro vestido indiano que encontra no armário, um par de brincos de pena de ave amazônica com o selo do Ibama, coisas de ecologista. Sem batom ou qualquer outro artifício, e, com uma lavanda de sândalo, chega ao apartamento da festa. Afinal retorna dos defuntos, comentam os amigos mais próximos. Quem é aquela mulher exótica, indagam os mais novos integrantes da mesma turma. E logo cai no uísque sem gelo, “cowboy”, é a bebida preferida de Marcela, suspira. No apartamento estilo regional-afro-nordestino-novo-riche, toca If you were mine de Billie Holiday quando Denise chega com uma roupa de couro preta “dress to kill”, maquiagem pesada, cabelo no gel e um par de brincos de ouro branco com esmeraldas. Cumprimenta o aniversariante e, sem cerimônia, senta à mesma mesa de Isabel, afinal tinham amigos em comum. Denise não tarda a falar que Marte está mais próximo da Terra, que este fenômeno alteraria todos os arianos, signo solar regido por aquele planeta, e que se vê a “olho nu” como um ponto crescido avermelhado no céu e, que este mesmo acontecimento ocorrerá somente daqui a setenta e cinco mil anos... Envereda pelo papo de reencarnação, de que poderia vir a ser uma ariana dentro de setenta e cinco mil anos e ver este fato novamente. Uma amiga a interrompe por pedir desculpas da falta de educação e apresenta Denise a Isabel, que já estava na terceira dose. As duas se cumprimentam e relembram que já haviam sido apresentadas em outra ocasião e divertem-se ao recordar que, àquela noite, Denise tinha bebido demais e falado que a festa estava muito chata, pois todos lá eram metidos a intelectualóides-pequeno-burgueses e que não agüentava aquela verborragia. Isabel tinha tido a mesma percepção, mas estava comedida e resignada aguardando o momento ideal para deixar a festa, quando ouviu Denise falar aquilo, riu consigo mesma. Conversaram sobre tudo, zodíaco, filosofia, política, religião, futebol, relacionamentos amorosos... Ao fim da festa ainda estavam empolgadas com os uísques e a boa conversa. Acabam no apartamento de Isabel. Bebem. Fumam. Beijam. Trepam. Começam a sair. Não demora e Denise se apaixona por Isabel, que repete para Denise ir de leve pois tinham se conhecido agora e não queria estragar algo que poderia vir a ser muito legal. Denise se aquieta por uns dias, mas retorna a se declarar apaixonada. Diz que é muita sorte delas terem se encontrado já que ninguém quer nada sério hoje em dia... Isabel freia a outra por não ter a mesma intensidade de sentimento e que isto poderia vir a ser um problema. Assim, mesmo com uma vontade louca de se ver, Isabel rompe com Denise que passa a ter conflitos com seu telefone “Sony”...
AS MUSAS
Numa conversa com o seu irmão, ao telefone, Henriqueta passeia por entre as nuances psicológicas dos seres humanos. Seu irmão diz que as pessoas têm que sofrer por amor, do contrário não existiria poesia. Henriqueta reflete e fala acerca de que não existem musas universais e sim que uma musa só existe quando há um observador sensibilizado, logo, a musa só existe dentro do próprio observador. Seu irmão concorda e acrescenta que, talvez, não haja um encontro entre duas musas, uma admirando exatamente a outra, ao mesmo tempo, no mesmo espaço e que caso isto viesse a acontecer, utopicamente, as duas afortunadas teriam um amor ideal, encontro este que deveria ocorrer a cada setenta e cinco mil anos... A campainha de Henriqueta interrompe a conversa dos dois e ela atende a porta. Era Marcela que havia errado de endereço.
Isabel vacila um instante, morde seu lábio superior e quase o fere, enquanto torna a desligar o telefone-sem-fio. Olha para o mesmo, inerte, mudo em suas mãos fortes e um pouco grandes para uma mulher, e vê escrito “Panasonic”, onde diabos estava com a cabeça quando comprara aquilo, um símbolo consumista para alguém tão idealista quanto ela, argumenta consigo mesma, e, desvia, pelo menos naquele momento, do que esgarça seu peito esquerdo como numa cirurgia cardíaca sem anestesia qualquer. Afasta-se do aparelho e acende um cigarro. Traga fundo, fumaça junto com suspiro de alguém desiludido. Bate a não-cinza no cinzeiro de louça portuguesa, lembrança da última viagem que fizera com Luiz, seu ex-marido. Ah, Luiz, se pelo menos pudesse voltar no tempo... Reflete melancólica. E a porra do telefone que não toca! Volta ao mesmo conflito do botão “on” e “off” de seu Panasonic-sem-fio-com-secretária-eletrônica-de-última-geração. Ligo ou não ligo, pensa ao acender mais um cigarro e pega novamente o telefone, coloca a antena entre os dentes e morde como para se decidir através do flagelo da coisa. Franze a testa, já com vincos de uma mulher de quarenta anos, joga o cigarro ainda inteiro pela janela de seu apartamento, para quê ser educada nesse momento em que Marcela não lhe quer mais? Queria era ligar para falar o que ainda não havia sido dito! Para ouvir a voz de Marcela uma última vez que fosse... Nesse instante, pára seu pensamento, quando o interfone quebra ruidoso o silêncio do apartamento... Coração palpitante, e, a voz de um desconhecido pergunta se quer gás ou água... Não era ela. Pára com o interfone nas mãos e lembra. Como Marcela é linda, atraente, inteligente, agradável, gostosa, apaixonante. Recorda os tempos em que saiam juntas e tudo parecia ir bem, muito bem. Como Isabel adorava Marcela! E esta sempre reticente sugeria para aquela ir com calma, que a vida tinha lhe ensinado que não era assim que se fazia, que ela não estava apaixonada, mas que a achava muito legal e gostava de sair com ela. Isabel editava a parte “boa” da fala de Marcela e a tinha como um amor encontrado através de muito esforço. Muita sorte a gente se encontrar, Isabel lembrava. Afinal, ninguém quer nada sério hoje em dia e eu estou apaixonada, insistia. Não, não quero gás nem água! Quero a Marcela, batendo o interfone com força na parede de sua cozinha. Volta ao telefone. Não liga. Não toca. Isabel dorme então exausta um sono inquieto que só ela pode saber.
DENISE
Denise sempre dominou a arte do convencimento, gostava de se expressar, nas rodas de amigos era ouvida com interesse por todos. Tinha um verdadeiro charme com a sua inteligente oratória-falante-sobre-qualquer-assunto. Apesar de ter vinte e oito anos, se relacionava com pessoas na faixa dos quarenta. Ouvia deles que ela era muito madura para a idade que tinha, e, nunca tiveram qualquer diferença com ela devido a esta discrepância etária. Já havia algum tempo saía com Henriqueta que a amava intensa e cegamente. As duas tinham uns quinze anos de diferença de idade e isto não importava a nenhuma das duas. Denise reluzia ao falar perante Henriqueta que sorvia cada palavra como um bálsamo dos deuses. Mesmo com as muitas noites saindo em turma, devido à insistência de Denise, Henriqueta se sentia orgulhosa por aquela mulher lhe ser tão lindamente linda. Mesmo cansada seguia Denise. Afinal, era apaixonada por ela e declarava isto em público toda vez que lhe aprazia, a despeito da outra se sentir desconfortável e, em casa, lhe explicar que não gostava de manifestações exacerbadas de carinho em público. Denise convidava Henriqueta mais por costume, inconscientemente. Não entendia por que fazia isso, mas quando se tocava, já estavam as duas com a turma na noite. Bebia. Fumava. Falava. Desencantava com a primeira manifestação apaixonada da outra. Com o tempo, Denise diminuiu a fala. Saía. Balbuciava pouco. Bebia. Fumava. Decepcionava-se com as mesmas palavras de paixão declamadas por Henriqueta. Começou a sair menos e ficou triste sem conhecer o motivo. Ela, que sempre era a alegria de todos, passou a ser alguém introvertida e até um pouco tímida. Henriqueta não. Acompanhava a sua musa em qualquer situação até ficar em casa sem fazer nada, só com a companhia da TV. Denise acabou seu namoro e retornou a ser como era antes, com o passar do tempo, e não entendeu muito bem os porquês de tudo aquilo ter acontecido.
ISABEL E DENISE
Você só gosta de quem não lhe dá valor, Isabel ouve isto pela enésima vez de mais um amigo. Pro caralho todos vocês, ninguém sabe o que se passa em minha cabeça, nem mesmo eu, esbraveja. E, após ter amargado meses no apartamento sem sair para se divertir, naquela noite resolve aceitar o convite para ir a uma festa de aniversário de um amigo-de-uma-amiga-de-seu-primo. Veste-se, despretensiosa, com o primeiro vestido indiano que encontra no armário, um par de brincos de pena de ave amazônica com o selo do Ibama, coisas de ecologista. Sem batom ou qualquer outro artifício, e, com uma lavanda de sândalo, chega ao apartamento da festa. Afinal retorna dos defuntos, comentam os amigos mais próximos. Quem é aquela mulher exótica, indagam os mais novos integrantes da mesma turma. E logo cai no uísque sem gelo, “cowboy”, é a bebida preferida de Marcela, suspira. No apartamento estilo regional-afro-nordestino-novo-riche, toca If you were mine de Billie Holiday quando Denise chega com uma roupa de couro preta “dress to kill”, maquiagem pesada, cabelo no gel e um par de brincos de ouro branco com esmeraldas. Cumprimenta o aniversariante e, sem cerimônia, senta à mesma mesa de Isabel, afinal tinham amigos em comum. Denise não tarda a falar que Marte está mais próximo da Terra, que este fenômeno alteraria todos os arianos, signo solar regido por aquele planeta, e que se vê a “olho nu” como um ponto crescido avermelhado no céu e, que este mesmo acontecimento ocorrerá somente daqui a setenta e cinco mil anos... Envereda pelo papo de reencarnação, de que poderia vir a ser uma ariana dentro de setenta e cinco mil anos e ver este fato novamente. Uma amiga a interrompe por pedir desculpas da falta de educação e apresenta Denise a Isabel, que já estava na terceira dose. As duas se cumprimentam e relembram que já haviam sido apresentadas em outra ocasião e divertem-se ao recordar que, àquela noite, Denise tinha bebido demais e falado que a festa estava muito chata, pois todos lá eram metidos a intelectualóides-pequeno-burgueses e que não agüentava aquela verborragia. Isabel tinha tido a mesma percepção, mas estava comedida e resignada aguardando o momento ideal para deixar a festa, quando ouviu Denise falar aquilo, riu consigo mesma. Conversaram sobre tudo, zodíaco, filosofia, política, religião, futebol, relacionamentos amorosos... Ao fim da festa ainda estavam empolgadas com os uísques e a boa conversa. Acabam no apartamento de Isabel. Bebem. Fumam. Beijam. Trepam. Começam a sair. Não demora e Denise se apaixona por Isabel, que repete para Denise ir de leve pois tinham se conhecido agora e não queria estragar algo que poderia vir a ser muito legal. Denise se aquieta por uns dias, mas retorna a se declarar apaixonada. Diz que é muita sorte delas terem se encontrado já que ninguém quer nada sério hoje em dia... Isabel freia a outra por não ter a mesma intensidade de sentimento e que isto poderia vir a ser um problema. Assim, mesmo com uma vontade louca de se ver, Isabel rompe com Denise que passa a ter conflitos com seu telefone “Sony”...
AS MUSAS
Numa conversa com o seu irmão, ao telefone, Henriqueta passeia por entre as nuances psicológicas dos seres humanos. Seu irmão diz que as pessoas têm que sofrer por amor, do contrário não existiria poesia. Henriqueta reflete e fala acerca de que não existem musas universais e sim que uma musa só existe quando há um observador sensibilizado, logo, a musa só existe dentro do próprio observador. Seu irmão concorda e acrescenta que, talvez, não haja um encontro entre duas musas, uma admirando exatamente a outra, ao mesmo tempo, no mesmo espaço e que caso isto viesse a acontecer, utopicamente, as duas afortunadas teriam um amor ideal, encontro este que deveria ocorrer a cada setenta e cinco mil anos... A campainha de Henriqueta interrompe a conversa dos dois e ela atende a porta. Era Marcela que havia errado de endereço.