segunda-feira, 8 de novembro de 2010

(In)Diferenças




Falava ao telefone coisas que achava importantes, enquanto sua filha, do outro lado da linha, em outro estado brasileiro, mastigava o seu café:

 - E aí, quando eu tava mais perto de entender o que estava acontecendo, ela me puxou com força e me aplicou uma injeção.

- Hum.

- Apaguei na hora Martinha, nem doeu, mas doeu depois, acho que dormi por dois dias inteiros.

- Certo, certo.

- Sua mãe se viva fosse não teria deixado aquela maluca enfiar aquele troço na minha bunda, nunca vou saber o que era. Até perguntei depois, sabe?!

- Sei.

- E não me disseram patavina. Falta de respeito com gente mais velha, né Martinha?!

- Hã?

- Falei que era uma falta de respeito com os mais velhos.

- Ah pai, o senhor não é velho.

- Obrigado minha filha, mas com setenta anos não sou mais nenhum garoto, mesmo que ainda tenha minhas paqueras na rua, ha-ha-ha, sabe como é né? E nem preciso daquele azulzinho pra funcionar, elas ficam loucas comigo, pedem mais e...

- Quem pai?

- As meninas.

- Pai, você lá tem idade pra ficar atrás de meninas.

- Mas não são meninas, são as mulheres de minha geração que conheço, ficaram viúvas ou separaram e eu...

- Não é certo um velho ficar atrás de menininhas!

- Mas, eu falei que não eram... Que barulho é esse?

- Hã?

- Esse barulho, chof chof, e parece que a torneira tá aberta.

- Tô escovando os dentes, estou com pressa.

- Ah, sim. Quer que eu ligue mais tarde?

- Não pai, pro senhor estou sempre disponível, quando minha carona chegar eu aviso. Mas como eu disse antes, o senhor ainda é muito durinho, bonitão, deve ter feito um sucesso no hospital.

- Mas, Marta, você acabou de dizer que sou velho e...

- Eu? Falar que o senhor é velho? De jeito maneira. Nunca falaria isso, acho o senhor um gatão pra sua idade.

- Hum! E agora, parou de escovar os dentes, deu descarga que eu ouvi, foi descarga não foi?

- Foi.

- E que é que você tá fazendo agora que você tá falando baixinho?

- Nada!

- Tá falando com os meninos?

- Tava não, eles já estão prontos pra escola, falei só pra eles se apressarem pra não perderem a van da escola.

- Filha, deixa que eu ligo depois.

- Nã-nã-não, pó falar.

- Mas você não está me ouvindo!

- Ih, pai, já vai começar de novo? Isso já é a velhice né?! Rabugento...

- Eu rabugento, Marta?

- É!

- Mas eu tava contando sobre...

- Ô, paizinho... Desculpa, minha carona chegou, depois a gente se fala tá? Beijo. Tchau.

- Mas...

Ficou com o telefone na orelha, e ainda ouviu o bater de telefone, não sem antes escutar “bora bando de preguiçoso, teu avô já me atrasou e...” e o silêncio depois do corte da ligação. Uma lágrima escorreu pelo rosto enrugado. Baixou o aparelho no gancho, lentamente, enquanto olhava pra janela à sua frente, chovia um pouco e os pássaros se abrigavam sem cantorias. Antônio pegou então o frasco de remédios que o médico havia prescrito e tomou um comprimido, e, na mesma cama em que estava se deitou novamente. Queria dormir pra não pensar mal de sua filha. Pra não sentir raiva por ela não ter escutado nenhuma frase do que dissera. “Mas é a vida dela, ela faz muita coisa, a coitadinha, nem sei como consegue fazer tudo o que faz”, justificava o injustificável para si.

Nesse meio tempo, o telefone tocou ruidoso no quarto do apartamento de Antônio, era um vendedor de cartão de crédito. Botou o telefone no gancho sem dizer uma palavra ao moço da outra linha, tomou outro comprimido, e mais dois por garantia, com um pouco d’água do copo que ficava sempre ao seu lado junto ao porta-retratos dele, com a mulher e a filha numa praia a séculos de distância em sua memória. Fechou os olhos e os pensamentos voltaram um pouco mais lentos, mas voltaram. “Aquela ingrata insensível, não percebe que me viro sozinho em meu apartamento, ainda mando dinheiro pra faculdade do mais velho e pro cartão de crédito daquele infeliz de meu genro”, era a frase em círculos que estava fechada em sua mente. Nada pensava, além disso. A mesma frase repetida inúmeras vezes, e, cada vez mais lentas.

Algo nele começou a queimar do lado do coração, uma dor que não se explica, só se sente, levou a mão ao peito e se contorceu na cama, como numa dor insuportável e gemeu baixinho: “não, ai ai, não aguento mais isto”. Depois de cerca de uma hora, se mexeu da posição de feto em que estava, pegou a caixa de remédios, sem olhar, sem pensar, sem ouvir os pássaros que voltaram a cantar com o sol que aparecera, sem ouvir o telefone que tocava, e entornou todos os comprimidos de uma só vez, com o resto de água que ainda tinha em seu copo, fez um certo esforço para os comprimidos descerem, como não desceram todos de uma só vez, cuspiu os que ainda não haviam entrado, melados com a sua saliva e pôs um por um, goela abaixo, sem água mesmo, o que fez levar uns dez minutos pra engolir o último. Nesses dez minutos, pegou o porta-retratos atirou junto com o telefone arrancado da parede, pois era um homem forte, pela janela.

Deitou e dormiu!


6 comentários:

  1. Ai, que triste, a solidão na velhice...Vamos educar bem nossos filhos, ensiná-los o que é o amor e a gratidão..Depois, quando alçarem vôo, o melhor é irmos atrás de nossos sonhos...

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  2. é...a velhice e solidão andam juntos, ninguém vê a estrada dura que foi chegar nessa idade e ainda
    sustentar pessoinhas assim... mas eles chegam lá esses jovens enfadonhos e sem graça e com certeza tao depressivos e vão perguntar a quem a razão...não terão nem amigos e ninguém pra contar.
    Temos que viver e nos afastar seja quem for, afastar e viver...Cíntia

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  3. Cris,
    essa é uma realidade possível. Acredito que cada um é responsável por si, claro que há momentos em que a solidão bate, mesmo com muita gente ao redor, daí a ligação da personagem à sua filha. Passa pela educação sim, ao meu ver, além da própria forma que a sociedade se forma, com pressa e sem humanização.
    obrigado
    bjo

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  4. Cíntia,
    é, sim, você foi mais pro lado da interpretação literal, gosto disso, até mesmo porque, por mais que se afirme, ou que seja até verdade, que o escritor não se inspirou em algo ao seu redor, é pura mentira.
    beijos e obrigado

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  5. Entrei no seu blog por acaso e gostei do que li. Tem muita qualidade o que escreve! O texto acima evidencia a capacidade que nós seres humanos temos de nos tornarmos máquinas forjadas por um ritmo que não corresponde à nossa natureza, temos tempo para tudo, menos para ouvir, nos sensibilizar com o outro. A solidão é um dos fatores, que atinge os mais frágeis: pessoas idosas. Doce ilusão!! Ela atinge a todos nós, acontece que na velhice isso se potencializa porque não é só a indiferença de um filho, é também a ausência do amor de uma vida, do amigo de pescaria, do trabalho cultivado por anos.
    É preciso que a nossa sociabilidade seja restabelecida no afeto e não somente nos compromissos, metas e objetivos. É preciso resgatar nossa humanidade. Parabéns pelo blog, pelo que escreve e principalmente pela mensagem que transmite. Silene

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  6. Silene,

    Tenho de confessar, o seu comentário, não só neste texto-diálogo, mas, acredito que em toto o meu blog, foi o mais preciso e coincidente com a mensagem que queria transmitir.
    Gostaria muito de lhe convidar, se retornar por aqui, que comente outros versos e prosas em meu espaço.
    Obrigado pelas felicitações e elogio.

    Seu comentário fala por si, concordo tanto com ele, quanto o texto que escrevi.

    Abraços

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